sexta-feira, 24 de julho de 2009

A Chuva

Há quanto tempo estava ali? Não sabia. A sensação era tão boa, e, certamente, compensava. Era como se toda aquela água que caía sobre ele penetrasse pelos seus poros e ocupasse o buraco em seu coração, dando-lhe uma falsa sensação de alegria. Obviamente, o rapaz do fone e lágrimas sabia que aquele delicioso gosto de felicidade era ilusório, mas melhor do que nada. Ele concentrava-se apenas em sentir. As gotas de chuva, a água escorrendo pelo seu corpo e ensopando a sua roupa, a grama encharcada sob seus pés descalços, e o cheiro da terra molhada. Como ele adorava aquele cheiro...
Esperava sem muito esperar. Estava ali mais por si mesmo do que por qualquer um. E enquanto sua possível companhia não chegava, aproveitava as presenças da chuva, a purificar-lhe o corpo e as ideias, e a do fone, a embalar-lhe os sentimentos.

° ° °

“Esses corredores são estreitos demais” pensava ela. Por vezes, quase tropeçou em alguns muitos pés. Convenhamos que ela já era meio estabanada, mas fora isso, os corredores eram sim bastante estreitos para tantos alunos.
Todos trocavam de salas, era intervalo, e a menina de bochechas ruborizadas andava, esquivando-se do maior número de pessoas de que conseguisse, com o fichário e alguns livros nas mãos. Quase chegava ao seu destino quando um grupo de pessoas mais apressadas que o normal esbarrou nela fazendo-a derrubar os livros.
- Droga...!
- Ajuda?
Antes que pudesse ouvir a recusa, o rapaz do fone e lágrimas se abaixou e começou a juntar os livros para ela, fazendo as bochechas, novamente, ruborizarem-se. Ela levantou seus olhos tímidos ao alcance dos dele, fixos, certos, na sua direção.
- Obrigada.
Com muita pressa, ela recolheu seus papéis e livros das mãos dele e afastou-se a passos envergonhados. Adentrou a sala num turbilhão e, rapidamente, procurou um lugar isolado, no canto, como se já previsse o que encontraria entre seus livros: havia ali uma desconhecida folha de fichário com uma familiar letra curvada.
- “Ser ou não ser? Eis a questão. Amar ou não amar compete ao coração. Te espero no gramado em frente à torre sul ao término da aula”. – seus lábios pronunciaram aquelas palavras num sussurro para que só o seu incerto coração pudesse ouvi-las.

° ° °

Parecia que o tempo não passava... Já estava ali, sabia, há muito tempo, mas sentia que não havia passado nem um segundo desde que chegara. Repassava, em seus pensamentos, momentos passados com ela. Daí o sorriso. Abriu os olhos e, mais uma vez, olhou ao seu redor à procura da sua companhia, e nada. Continuava ali com a chuva, a grama e a música, agora melodiosa, melancólica e esperançosa.

° ° °

Havia um dilema agora. Como na carta, ser ou não ser? Amar ou não amar? Ir ou não ir?
Ela não sabia. Mas será que deveria saber? É algo que se sabe? Ou que se sente? Ela não sabe. Daí o dilema.Vasculhava em sua mente razões para sim e para não, e as encontrava. Ambas. O problema era a escolha. Sempre a escolha! O poder da escolha. O poder de ferir da escolha. De ferir, de machucar alguém querido, estimado.
O sinal da dispensa despertou-a fazendo-a levantar e encarar a sua dúvida. Arrumava com calma seu material. Todo tempo era precioso Pensamentos flutuavam pelos âmbitos de seu coração e sua cabeça, e o tempo corria, acelerando seu coração; as pessoas partiam como que para deixá-la só com a sua escolha; suas pernas, até então paradas, pareciam tomar-lhe o controle e fazer a decisão por ela; porém, ao chegar ao batente da porta, o garoto do pingue-pongue fez a dúvida voltar a crescer...
- Oi amor!
E decrescer.
- Depois nos falamos, tenho jogo. – Respondeu ele, brevemente.
Uma tentativa em vão. Mas um bom teste. A escolha fora feita e, após esse diálogo (ou monólogo), seria tomada sem arrependimento.

° ° °

Agora a música era de espera; era paciente e solitária. O rapaz do fone e lágrimas estava agora sentado abraçando os joelhos. Seus olhos, ora abertos, derramavam lágrimas que se confundiam com a água da chuva incessante. A sensação, antes tão boa, começava a sumir; com a sua ausência, a solidão começava a se expandir pelo interior do rapaz. A espera chegava ao fim, assim como a música em seus ouvidos.

° ° °

A cada degrau descido, a dúvida aumentava. Ela descia aquelas escadas lentamente, num misto de culpa e aflição. Apesar do que acontecera à porta da sala, apesar da falta de atenção, o garoto do pingue-pongue era seu namorado, e isso, sem dúvida, ela respeitaria. Ela gostava dele. Gostava – muito? – dele. E por isso mesmo não entendia aquela vontade repentina de descer a torre sul da escola e se encontrar na chuva com um cara que ela sabia que gostava dela.
Ao fim da escadaria, seu dilema chegava ao fim. Agora, havia apenas uma única escolha à sua frente: sair por aquela porta ou dar meia volta e esquecer tudo aquilo.
De repente, a menina de bochechas ruborizadas se perguntou o que seria tudo aquilo. Aventura? Dúvida? Traição? Tentativa de disfarçar uma crescente incerteza em seu interior? E em meio a tal discussão interna, ela percebeu que agora havia duas escolhas: subir as escadas e não responder à nenhuma daquelas perguntas, ou girar a maçaneta e esperar a chuva trazer as respostas.

° ° °

A música ressoava pela sua cabeça e o fazia repeti-la. Primeiro, apenas para si, depois mais alto, e mais alto para o que mundo pudesse escutar. Para que alguém pudesse tomar parte da sua dor e dividir esse peso com ele. De pé, o rapaz do fone e lágrimas estava pronto para abandonar a chuva e a sua esperança.

° ° °

Seus ouvidos estavam colados à porta. Sua boca, entreaberta, e seus olhos, emocionados. Enquanto escutava aquela bela melodia a escapar da boca dele, fechava os olhos e imaginava a cena. A chuva a cair, a grama a sujar-lhe os pés e as lágrimas confundindo-se com a chuva. Ela não conseguia – infelizmente – imaginá-lo sem as lágrimas nesse momento. E, também infelizmente, sabia que, naquele momento, aquelas lágrimas eram culpa sua.

° ° °

Um som e um sorriso.
Mesmo sem vê-la, sabia que era ela. Os passos na grama. O leve barulho da porta. A qualquer momento, a doce voz que cantava em seus sonhos, mais uma vez se faria ouvir. Em sua mente, ele já via a imagem das bochechas ruborizadas molhadas pela chuva.
- Você vai ficar aí em pé?
O rapaz do fone e lágrimas com chuva virou-se e avistou a menina. Seus sorrisos encararam-se e eles se aproximaram. Sentaram-se lado a lado na grama molhada.
- Então, qual é o objetivo de ficar parado na chuva? – ela perguntou enquanto abria o guarda-chuva.
- Pneumonia. – A menina subitamente parou seu movimento. – Brincadeira. Às vezes é bom para aumentar a nossa sensibilidade. A nossa capacidade de sentir.
- Você sempre falando complicado. Entra aqui embaixo.
Eles se espremeram sob o guarda-chuva, ficaram bem próximos. Por um momento, o rapaz do fone e lágrimas ficou observando a sua companhia, muito feliz pela sua presença.
- O que você está ouvindo? – perguntou ela puxando um dos fones.
Agora, a música era outra, mais alegre. Por um momento, a menina de bochechas ruborizadas pensou como a música fazia parte da vida daquele rapaz. Enquanto dividia o fone, a música e aquela sensação com ele, pensava em como havia escolhido estar ali, e quando obteria as respostas para as suas perguntas.
- Ei!
Abruptamente, ele retirou o guarda-chuva de onde estava, desfazendo a proteção improvisada de cima deles.
- O que você está fazendo?
- Chega dessa falsa proteção. – Seu tom era, como de costume, indecifrável. – Que tal agora aprender a sentir de verdade?
- Você é maluco...
- Vamos, levante-se.
Ele arrancou o fone do ouvido dela e do seu também. Ao desconectá-lo do celular, a música – que havia sido aleatoriamente trocada – passou a tocar livremente pelo ar. Ela se levantou desprotegida da chuva e postou-se diante dele.
- Tire o tênis.
- O quê?!
- Vamos, tire o tênis! Como você vai sentir a grama se não usar os pés?!
- Você é maluco...! – e tirou os tênis. – Pronto. E agora?
A chuva caía gostosa. Os pingos eram finos, mas a chuva era densa. Era daquele tipo que te molhava por completo, ao mesmo tempo. Era só fechar os olhos e sentir o seu corpo se molhar lentamente, vagarosamente. A sensação crescia com o passar do tempo. Era ótima.
- Fecha os olhos. É basicamente isso... Mantenha-os fechados, mantenha a sua mente livre, vazia. Concentre-se no sentir. Não no que você quer sentir, no que você parece sentir, mas no que você, de fato, sente. O que essa água, essa chuva, cada gotícula dessa faz você sentir. Aprenda a sentir as coisas como são. Aprenda a ouvir e acreditar no que você sente. Apenas sinta a chuva na sua pele, no seu cabelo. A grama sob os seus pés, entre os seus dedos. A gota d’água que cai sobre o topo da sua cabeça e, pendurando-se por um longo fio de cabelo, sai em busca da sua liberdade... Apenas sinta...
A menina de bochechas molhadas e geladas abriu seus olhos molhados. Mas não de chuva. Assim como ela, o rapaz sem fone, mas com lágrimas a observava à suave melodia que pairava entre os dois. Já haviam partilhado fone, agora partilhavam lágrima. Ele aproximou-se dela, de forma a estarem a menos de vinte centímetros um do outro. Encaravam-se como nunca antes. Ambos buscando coragem, certeza, respostas. O rapaz não ousou forçar um movimento. O próximo passo é dela. Os olhos da menina se alternavam entre os olhos do rapaz. Era o momento da escolha.
Ela não agüentou. A música, as lágrimas, a chuva...
Voou sobre o rapaz e seus princípios e o agarrou num beijo interminável. Ficaram ali os dois; o rapaz com bochechas ruborizadas e a menina com lágrimas de dúvidas. Ficaram ali, embalados pela música, com os pés descalços na grama, sob a chuva que os dissolvia num único corpo, imbuído de amor e dúvidas.

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