domingo, 24 de abril de 2016

Chiado

Eu não tinha como começar diferente. Diferente daquele chiado gostoso do vinil na voz da Billie... Assim como não podia, não mudaria. Não mudaria absolutamente nada...! Agora temos uma estrela. E não uma qualquer, uma estrela daquelas que chega e se aproxima. Lentamente, vem chegando perto, quase na mesma distância entre a sua boca e a minha. E daí, entra o tempo. E tudo bem... Origami se faz com o tempo mesmo. Cada dobra é tão precisa, que não há por que ter pressa - isso é coisa de coração vagabundo, desejoso de mais. 

Assim como o vinil em looping - 4 vezes, minimamente - parece estar o meu coração. As frases se repetem, o vinho, uma calma e uma paz. Uma clareza que só as maiores despreocupações podem sentir... Acho que seria necessário o alfabeto ao contrário algumas vezes pra descrição não sair do eixo; uma ou duas piruetas, sabendo de onde partir e aonde ir; encaixar exatamente cada dobra, com o carinho que só um coração transformado em dedos conhece.

E a melhor parte: um luar particular, daqueles que entra por uma fresta qualquer e ilumina o escuro, sempre indicando o caminho, que é pra frente, pra onde aponta o coração.


sábado, 12 de dezembro de 2015

À deriva

- Capitão?
- Pois não?

[silêncio]
- Pois não?!
- Ahm. Desculpe.

[silêncio longo]
- Quanta neblina.
- Te incomoda?
- De forma nenhuma. 
- Com o tempo, a gente se acostuma a olhar a neblina.
- Levou muito tempo pra você aprender, Capitão?
- Eu ainda não sei.

[silêncio]
- Entenda: a neblina não a vemos de perto. Apenas de longe. Lá longe, as curvas do céu se esfumaçam, as gotas de tinta se distorcem. De repente, tudo está em expansão, e o quadro se desfoca completamente... Parece que tudo cresce e se aproxima. [silêncio] Sem se dar conta, você está no meio da névoa. Nebuloso, turvo, distorcido. As gotículas de água raspam na pele dos seus braços e acomodam-se suavemente em seu rosto. Você tenta enxergar, mas não tem muita certeza se está conseguindo. Por fim, o nevoeiro se vai, desprendendo de você alguma coisa que não se sabe ao certo.

[silêncio]
- O senhor já passou por muitos nevoeiros, Capitão?
- Deles, eu nunca saí.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

De(s) a pego

Olhar a eternidade passar como quem observa o deslocamento de uma nuvem. Queimar-se inteiro por dentro diante do quão irremediável é o tempo; diante do simples fato de os passos não andarem para trás - apesar de olharmos tanto o passado. Esfumaçamo-nos na tentativa falha de deixar cinzas por um chão que, igualmente, se esfacela aos poucos.

Assim, agarramo-nos a todo resquício de algo que já foi ou possa ser - e surpreendemo-nos com a atualidade de nossas próprias e singulares palavras, e com a concretude de seus sentidos. 

Tudo isso para dizer: calma. Para proferir as mesmas palavras repetidas, relegadas a páginas e páginas azuis, velhos mausoléus de esperanças rasgadas com a fúria de um coração partido - juntado e, enfim, re-partido.

Tudo isso para dizer: tenha fé. É sempre o que sobra no final.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Paralelo

Sem muito o que dizer ou calar. Em algum momento, as palavras tornam-se repetitivas e desbotam-se aos poucos. Não há explicação, nem tampouco aceitabilidade, digamos. É quase um resignar-se por fora - mas, certamente, não por dentro. É difícil isso de se resignar por dentro... Eu fico esperando dias a fio.

Faltou o ar...
E não era da fumaça do cigarro que fumava, bem naquele dia que te conheci. Conversa vai e vem; um deck frio; a fumaça continuava a subir, costurando formas no ar tão espontâneas quanto as sinapses no meu corpo e coração.

Faltou o ar.
A gente segue a direção que o nosso próprio coração mandar. Ok, combinado.
Mas, sabe...
Até as linhas paralelas se encontram no infinito. E o mais lindo: esse tal infinito cabe no espaço de um beijo, de um olhar fulminante tentando descobrir pensamentos escondidos; cabe na beleza intraduzível de algumas palavras.

Faltou o ar.
É fácil encontrar o infinito. Até as linhas paralelas se encontram no infinito.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Indizivelmente eterno

eu não tenho a pretensão que ninguém leia isso até o final.
eu resolvi abrir mão dos meus finais!
é como se algo tivesse se desprendido da minha atenção e me permitido simplesmente observar as luzes de uma noite escura e sincera. enquanto eu, parado na janela, sentia o vento me bater suave no rosto e procurava uma palavra pra dizer esse momento, essa vida, ela simplesmente não veio.
me senti deliciosamente sem palavra. livre em um indizível presente...!
descobri a porosidade que tanto procurei. de tão linda, eu poderia ficar pra sempre olhando a eternidade passar.
abri mão dos meus finais. que o meu presente seja indizivelmente eterno!

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Testamento

A todos, eu deixo o meu amor. A minha compaixão, a minha humanidade querida. Acho que posso, em vida, ter descoberto um amor horizontal, doce, daqueles que faltam aos homens. Eu deixo a minha compreensão; valioso presente recebido de outros eus, ora acordados, ora adormecidos. A compreensão necessária para transitar entre os viventes e os quase-viventes; necessária para se situar numa esfera líquida e volátil com a solidez de uma rocha e a maleabilidade de uma nuvem.

Eu deixo o silêncio, como lugar do pensamento, da reflexão e do autoconhecimento. Eu deixo o espaço do entre, como o meio para as trocas, a tolerância, o cuidado e o afeto. Eu gostaria de deixar as minhas palavras - modéstia à parte, sempre adorei as minhas palavras! -, mas infelizmente talvez as precise em algum tempo. No seu lugar, deixo as intenções. Sei que sempre tive boas intenções, então as deixo aos que virão, para que multipliquem-se e continuem a significar.

A mim, deixo a liberdade. Ou melhor, levo. Levo comigo o frescor de uma vida livre, de pensamentos, atos e sentimentos. Da liberdade, deriva a sinceridade, e a levo comigo ou deixo-a para mim. Me deixo, na verdade. Me deixo ser eu, ser sincero e livre. E feliz.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ao revés do tempo

- Que horas são, moça? - ele perguntaria tão timidamente.

Sem resposta.
"Nossa, custa interromper a conversa por dois segundos?". Questionar-se-ia. Seria assim tão inconveniente? Acharia que não. Estações de trem seriam sempre movimentadas, barulhentas e verdadeiramente cheias, mas esta estaria silenciosa. Olharia o velho relógio. 16h12. Parado.

- Muito obrigado, moça. Por nada! - acrescentaria.

Passaria, então, a andar a esmo. Levemente, deslizaria pelas plataformas, a procura de algum indício de tempo, sem sucesso. Observaria aquele local em detalhes. A sua direita, a bilheteria, ao fim de um amplo corredor. Seus funcionários, quase como robôs, trabalhariam a um compasso binário, cuja contagem exalava tédio. Os pisos enladrilhados, próximos à bilheteria, chamar-lhe-iam a atenção, pela surpreendente polidez. A sua esquerda, alguns cafés, umas poucas pessoas sentadas. Um pouco mais afastada, uma revistaria. Títulos conhecidos, porém atrasados. "É, apenas esperar", constataria o homem.

Maquinalmente, o relógio seria consultado por 5 vezes, nos próximos 23 minutos. Ele lembrar-se-ia da vez em que caíra na piscina, na casa da vó Alice; ou, ainda, quando moleque, de Amanda, aquele casinho de amor; das corridas com Dinamite, o pastor alemão, e das missas no velho televisor com, provavelmente, um pouquinho de Bom-Bril na ponta na antena. Caso se lembrasse de Milena, esboçaria um sorriso. E, assim, sorriria para a vida. "Milena...", pensaria. E, rapidamente, desfocaria os pensamentos.

- É o trem, que espera? - o guri despertar-lhe-ia de súbito.
- Pois não?
- É o trem que o senhor anda esperando?
- Se é. - responderia, alocando um tom de simpatia - Ele anda demorando.
- Ou é o tio que anda vindo cedo.

O homem parou. Olhou por um instante a sua volta. Algo parecia fora do lugar.

- Você tem as horas, guri? - perguntou observando-o fixamente.
- E quem não tem, tio? - responderia o guri, erguendo o pulso esquerdo e deixando a vista o relógio. - Está a desmanchar, vê?

"Sim, eu vejo!". Os ponteiros do relógio escorreriam lentamente, quase como se parados no tempo. E, parado, ficou o homem, estático, sem acreditar. "Os ponteiros estão derretendo...". Ao seu redor, ainda poucas pessoas. Ficavam a conversar suas amenidades, realizar suas despedidas e recepcionar os seus chegantes.

- E como anda o do tio? - o homem não queria encarar o guri.
- O quê do tio? - replicou o homem, incomodado.
- O marcatempo - diria o guri, cujos lábios ensaiariam um esboço de sorriso.

Antes mesmo de saber, o homem já sabia. Há muito haveria o seu relógio parado; seu uso teria se esgotado, quase como o próprio tempo. Porém, ao invés do normal, ao estender o braço, os ponteiros não mais lhe obedeciam, giravam ao contrário, ao revés do tempo. 16h03. O homem sentia-se andando para trás; o guri ver-lhe-ia de forma diferente.

- O tio precisa de mais tempo, não é? - acalentar-lhe-ia o sorriso do guri. O homem, sem defesas, surpreendeu-se com as poucas lágrimas inquilinas de seus olhos. Com um rápido suspiro, mandou-as embora.
- É, o tio precisa, guri.

O silêncio compartilhado entre os dois vagarosamente cedia lugar aos zumbidos do trem que se aproximaria, distante, na plataforma. Arrastar-se-ia pelos trilhos, juntando multidões em silêncio. Enfim, parado. O homem observou o guri e, ensaiando uma despedida, aproximou-se para um abraço.

- Adeus, tio.
Por um instante, o homem parou. "Adeus. Então é assim." O trem começaria os seus primeiros movimentos.
- Adeus, guri.

E, antes que o homem pudesse entrar no vagão, o guri agarrou-lhe o bilhete da mão, e enfiou-se no interior do trem, já em leve movimento. Incrédulo, o homem ainda tenta correr uns três, dez, vinte metros, atrás do trem em movimento, mas inutilmente. Arfando, ele apoia-se nos joelhos para recuperar o ar, mas algo toma-lhe novamente a atenção:

- O tio precisa de mais um tempo! - gritar-lhe ia o guri de uma das janelas - Então, toma-o, mas que seja seu! - e sumiria junto ao trem no horizonte.

Ainda ofegante, sem compreender muito bem, o homem observava o trem afastando-se mais e mais veloz. No meio da barulhenta estação, ao encontrar a saída, o homem vislumbra mais uma vez aquela estação. Fazia sol do lado de fora. 16h27, marcava o seu relógio.