quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Não só o Amor - Parte 1


CENA 1 – Está um homem num apartamento sentado diante de um espelho, ensaiando algo.

HOMEM – (ensaiando) Eu preciso te contar uma coisa... Na verdade, acho que já vinha acontecendo há algum tempo, eu achava que tinha superado, mas... (para) Ta uma merda, ela vai surtar...

No outro lado do palco, há uma mulher como se fosse entrar no apartamento do homem, mas ela também parece indecisa, ou ensaiando algo.

MULHER – Coragem, Raquel. Coragem... Você já está aqui, não pode ir embora... Foram anos, um pouco confusos, mas tantos, tantos anos vivendo na sombra... Não. É melhor continuar assim... Eu, ai... Eu... Ta frio aqui... É melhor ir embora...
HOMEM – Talvez ela reaja bem... Tanta coisa aconteceu nesse último ano... Talvez ela ache graça... É uma ironia tão grande... Ela não deve me amar... Não, não deve...
MULHER – (ensaiando) Era meio novo para mim... Uma experiência nova... Eu não tinha certeza se eu queria, mas ela fazia parecer tão bom... E, sabe, num sábado à noite, meio solitária, coisas acontecem... (começa a chorar).
HOMEM – Será que ela vem...? (espera impaciente) Essa espera toda, eu não agüento... (pega um cigarro, coloca na boca, acende e vai em direção à porta. Abre-a e vê Raquel chorando) Raquel?!
MULHER – (se assusta) Ah, Pedro...! (limpando as lágrimas) Desculpe, eu...
PEDRO – O que você faz aí fora? Você não ia bater...? Você está chorando...?!
MULHER – (entra no apartamento) Eu ia bater, é que... Entrou alguma coisa no meu olho...
HOMEM – (não acredita, mas não insiste) Claro. (fecha a porta) Tudo bem? (se aproxima).
MULHER – Tudo. (dá-lhe um abraço, mexe no cabelo dele) Você queria falar comigo?
HOMEM – Sim... Cigarro? (ela aceita, se aproxima, e acende o seu cigarro no dele) Como vai a Laura?
MULHER – Bem... Ela estava posando quando eu saí... Aparentemente, a maioria dos pintores – você deve ser a exceção – gosta de pintá-la em casa. Aí eu saio...
HOMEM – Não gosta de vê-la posando para os outros?
MULHER – Não gosto da maneira como eles a olham... Mas tanto faz, eu não tenho com o que me preocupar.
HOMEM – (para si) Será...? (para ela) Raquel, eu te chamei por uma razão muito importante e difícil pra mim...
MULHER – Pedro... Eu também preciso te falar uma coisa, eu... Eu preciso da sua... De... (ela está muito emocionada).
HOMEM – Eu vou pegar uma água para você.

Pedro sai. Raquel continua na sala e o segue com o olhar, bem emocionada. Ela pega uma camisa xadrez de Pedro sobre a mesa e a cheira. Ele entra com a água e a vê cheirando a camisa.

HOMEM – A Laura usou essa camisa durante a pintura... (ela recoloca a camisa sobre a mesa e pega a água) Então, Raquel, o motivo da sua visita. Olha, é uma coisa muito séria e delicada, até porque você é minha amiga, e ainda tem tudo pelo que passamos... Às vezes, as coisas fogem do controle. Tem coisas que a gente não controla...
MULHER – (se aproxima) O amor.
HOMEM – Não só o amor.
MULHER – (confusa) Hã...?
HOMEM – (embaraçado, e um pouco emocionado) Eu pensei que seria mais fácil, que não faria esse papel ridículo... (pega o copo d’água da mão de Raquel. Vai beber, mas está tão nervoso que engasga e derrama parte da água na sua camisa) Merda...

Pedro tira a camisa, mas ainda está molhado. Levanta-se e começa a tirar a água de corpo com as mãos mesmo. Raquel não tira os olhos do corpo dele. Começa a se segurar, sutilmente, na cadeira. Pedro percebe que Raquel o observa com desejo, estranhando.

HOMEM – O que foi...?
MULHER – Não só o amor...!

Raquel pula sobre ele e o beija alucinadamente.



CENA 2 – Laura sozinha no seu apartamento. Ela está num sofá, posando.

LAURA – Assim ta bom? Ok. Será que vai demorar muito? Eu acho que devo encontrar a Raquel mais tarde. Ah, ela ta bem. Quando eu to posando, ela prefere sair... Não gosta do jeito que vocês me olham... Fica com ciúmes... Ela está meio esquisita, sabe, Henrique? Ela não me olha mais como olhava, está meio diferente; eu fico pensando se ela sabe sobre o que aconteceu... Eu to com tanto medo... Eu não sei como ela vai reagir, quando eu contar, mas foi algo tão... Eu não sei, espontâneo... E foi completamente carnal, não houve sentimento algum! Sabe? Eu acho que amar é algo que você sente, é insuperável... E agora... (põe as mãos na barriga, emocionada. Levanta-se, num ímpeto) Ai, desculpa, Henrique, mas eu to tão nervosa... (começa a se mexer, agitada) A Raquel não vai me perdoar! O que eu vou fazer?! Meu Deus, eu preciso contar a ela, isso se o Pedro já não tiver contado! Mas ele me prometeu que me deixaria contar... Mas a Raquel anda tão estranha, será que ele já contou?! Ela já deve estar sabendo, Henrique, ela se distanciou de mim... Eu preciso contar, ela precisa saber pelos meus lábios, Henrique! MEU DEUS...! (começa a chorar, um pouco desesperada) Ela vai sofrer tanto...! Ela não merece isso, Henrique... Não merece! Sabe, não é só o amor, tem a culpa também...



CENA 3 – Apartamento de Pedro. Raquel está de sutiã, calcinha e a camisa xadrez de Pedro, que está sem camisa. Ela está um pouco afastada dele, como que com repulsa pelo o que eles fizeram.

RAQUEL – Eu não sei o que está acontecendo... Eu nunca agi assim, Pedro... E a Laura, coitada, não merece isso... Mas ao mesmo tempo em que eu tento me afastar de você, eu quero sentir o seu cheiro, mexer no seu cabelo...
PEDRO – (ele se aproxima, ela se encolhe) Raquel, isso é loucura... Você ama a Laura, vocês se merecem... Sei lá, você precisa suprimir esses instintos...
RAQUEL – Não é só instinto, Pedro. Assim como não é só amor... Tem muita dúvida no meio...
PEDRO – Eu entendo... (vai a uma gaveta e pega uma pílula do dia seguinte) Toma. Vou pegar um pouco d’água pra você.
RAQUEL – (olhando para a pílula em sua mão e para Pedro) Você parece bem preparado para os ímpetos ocasionais...
PEDRO – (off) Depois de certos incidentes, a gente aprende.
RAQUEL – Incidentes?
PEDRO – (voltando com a água) Imagine-se com tantas mulheres nuas, posando para você pintá-las. Há coisas que a gente não controla...
RAQUEL – (pega a água e fala sublime, olhando para ele) O amor.
PEDRO – É... (indo em direção ao quarto) Agora, toma logo isso que eu preciso dar uma saída. Você vai ficar ou...?
RAQUEL – Não, vou pra casa... A Laura já deve ter terminado...
PEDRO – Ok, vou trocar de roupa. E você devia trocar também, né...

Pedro sai. Raquel fica parada. Olha-se num espelho com aquela camisa. Sorri. Lembra-se da pílula, a pega, e pega o copo. Coloca um pouco de água na boca, e quando vai colocar a pílula, hesita. Engole a água. Nitidamente, está pensando se deve ou não tomar aquela pílula.

PEDRO – (off) Raquel, ta pronta?
RAQUEL – (instintivamente, coloca a pílula no bolso da camisa) Quase! (recoloca a sua roupa, joga a camisa no chão).
PEDRO – (entrando) Olha, eu vou a um vernissage em Botafogo, quer vir comigo?
RAQUEL – (indecisa) Ah... Ta. Mas deixa eu me ajeitar (puxa um estojo de maquiagem).
PEDRO – Raq, eu queria te falar, que apesar de tudo, sabe, dos altos e baixos do nosso relacionamento, da confusão toda, você ainda é uma irmã pra mim...
RAQUEL – Valeu, Pedro. Vamos?
PEDRO – Vamos.

Saem.



CENA 4 – Apartamento de Laura e Raquel. Laura está deitada no sofá, dormindo, e Raquel chega um pouco bêbada.

RAQUEL – Cadê a droga do interruptor...? (dá uma topada) Ai, merda!
LAURA – (acordando com o barulho) Raquel...?
RAQUEL – Oi, amor... Achei! (acende a luz. Está descabelada e desarrumada) Ai, que noite! (joga-se no sofá).
LAURA – Aonde você foi? Eu fiquei te esperando...
RAQUEL – (tirando o sapato, com um pouco de dificuldade) Eu fui a um vernissage com o Pedro em Botafogo e depois esticamos até um barzinho...
LAURA – Custava ter me avisado, Raquel?! Pô, eu fiquei aqui te esperando...
RAQUEL – (indica o sofá) É, deu pra perceber...
LAURA – (levanta-se irritada) Você queria o que?! Que eu ficasse até às 4:30 da manhã acordada, te esperando, enquanto você fica por aí com o Pedro?!
RAQUEL – Ih, ta de mau humor, eu vou trocar de roupa...
LAURA – (a segura pelo braço) Vai é o cacete, eu ainda não terminei!
RAQUEL – Me solta! (se desequilibra)
LAURA – Você ta bêbada?!
RAQUEL – E daí?! Você fica bêbada o tempo todo...!
LAURA – Mas só quando eu estou com você!
RAQUEL – Mas talvez eu não queira mais ficar só com você, e aí...?! (se afasta).
LAURA – Você não faria isso... Você não pode...
RAQUEL – Então, para de pegar no meu pé! (sai para o banheiro).

Laura fica nervosa. Senta-se, mexe no cabelo, inquieta. A ideia de perder Raquel é demais para ela.

LAURA – (falando sozinha; olhos marejados) Você só podia ter me avisado...

Ela se levanta, anda até a mesa, pega um cigarro e um isqueiro, vai para a frente do palco. Nesse momento, Raquel para na entrada da coxia e fica escovando os dentes, observando Laura. Esta, hesita bastante quanto a fumar, mas quando percebe que Raquel a está observando, acende o cigarro.

LAURA – (para Raquel, mas sem olhar para ela) Você só podia ter me avisado...

Raquel a ignora e volta para o banheiro. Laura se entristece e apaga o cigarro.

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